Achamos seus Sapatos
“Achamos seus sapatos”
“Para a alma, aquilo que é imaginado, existe.” (Rubem Alves)
Diariamente sou tocada e também desafiada pelas angústias de quem, por motivos de adoecimento, não consegue mais se localizar.
Não reconhece lugares e pessoas.
Não se lembra de nomes, endereços, telefones ou de qualquer informação recente ou não tão recente assim.
Imagine só o que é sentir-se deslocado a maior parte do tempo?
Sentir como se não pertencesse àquele lugar, por não reconhecê-lo?
Não saber em que dia estamos, nem da semana, nem do mês e nem o ano…
Olhar para as outras pessoas e não encontrar sequer um rosto que lhe pareça familiar?
Muitas vezes, em meio a essa angústia, surgem comportamentos inéditos, que se manifestam como agressividade, reações exacerbadas e descontextualizadas, aparentemente.
Podem surgir também ideias de perseguição, o desejo de ir embora e retornar à antiga casa – não a anterior, mas aquela da infância, de muitos e muitos anos atrás.
Muitas vezes também, não verbaliza nada mas caminha muito, de um lado para o outro, visivelmente agitado e tomado por sentimentos que não consegue mais nomear.
Tudo isso pode parecer absurdo e assustar quem presencia tais ocorrências, pois estas não são reais aos olhos de quem as observa; aos olhos de quem mantém sua cognição e condição mental saudáveis.
Mas aí é que mora o desafio: mudar o lugar de onde se vê.
Imagine você vivenciando essa situação? Sentindo-se completamente perdido? Angustiado?
Não entender muito bem o porquê, não conseguir dizer o que sente e pensa, sentir-se perdido e abandonado, pois sua memória já não lhe ocorre mais? – E você não tem clareza/percepção sobre isso.
Este é o ponto. Você não tem mais raciocínio e entendimento cognitivo, mas continua sentindo, intensamente.
Costumo dizer que a memória afetiva permanece.
Não sabe com quem está falando, mas reconhece se está sendo acolhido, amparado e amado.
Percebe se está sendo cuidado, se continua sendo importante para alguém e se é tratado com gentileza e respeito.
Minha clínica diária consiste em fazer muitos movimentos para criar estas memórias afetivas.
Para acolher.
Você deseja ir embora para sua cidade natal? Te dou carona para que você apanhe o ônibus ou o trem, porém preciso que me aguarde finalizar algumas tarefas, para irmos em seguida. Pode ser assim?
Está aguardando a ligação ou a presença de um ente que já faleceu há muito tempo? Eu a aguardo com você.
Está certo de que todas os seus pertences foram roubados e muito aflito por isso? Você tem razão de estar sentindo-se assim, então vamos juntos procurar e encontraremos todos eles lá, no mesmo lugarzinho de sempre: dentro do seu armário.
Faremos essas descobertas todos os dias, tantas quantas precisar.
Dados de realidade, neste caso, servem a quem? Servem para quê?
Que possamos dar dados afetivos.
A verdade passa a ser a verdade de nossa versão.
Ela é quem vai cuidar, acalmar, amparar e oferecer novas possibilidades.
Achamos seus sapatos! E que lindos eles são! Aceita uma água para se acalmar, depois desse baita susto?
Então, agora me conta onde você os comprou que quero presentear uma pessoa Querida, com um par igualzinho a este.
Poxa, seu familiar telefonou e pediu para lhe avisar que estará em reunião e então chegará só ao entardecer. Me faça companhia e, se puder, me auxilie nisto que preciso finalizar…
E assim vai.
Acolho e tento estimular uma ação, que tenha função – esta precisa ser lógica e ter, de fato, um sentido e não precisamos de uma atividade complexa para isso: ajude-me a organizar esses papéis, a carregar estas revistas, contar essas folhas e ajeitar a sala.
Podemos colocar as almofadas ali, os jogos nas prateleiras e depois apontaremos os lápis, cuidando de descartar o lixo no lugar correto, pois assim tudo ficará visivelmente. organizado e limpo, para você e para mim.
Vamos conversando de amenidades, nos acolhendo e nos fazendo companhia.
Isto a prática me mostra todos os dias: a memória que não é cognitiva se recorda. E retribui.
Não lembram meu nome, mas o sorriso, o abraço e o olhar no momento da angústia com frequência conseguem me encontrar.
O desafio é grande, mas o afeto consegue ser ainda maior e faz valer.