Repetir, repetir até ficar diferente. Escutar, escutar até escutar plenamente.
Repetir, repetir até ficar diferente. Escutar, escutar até escutar plenamente. "Minha mãe repete as mesmas histórias todo dia. Nem sempre a gente tem paciência para escutar de novo." Ela repete. Repete histórias dos tempos. Conta e reconta imagens.Veio de família grande. Repete sabedoria, repete conselhos, repete falas, gestos e comportamentos. Monta histórias com pedaços de cenas que lembra. Vai alinhavando pontos soltos que nem sempre fazem sentidos para aqueles que a ouvem. Mas isso não desautoriza o trabalho de sua tessitura. Ela repete. Faz valer cada detalhe que consegue lembrar. E neles, reafirma sua dignidade. Dizem que a criança repete pelo contato com a novidade da linguagem; Que o jovem repete para contestar o mundo; Que o adulto repete para afirmar sua opinião. E o velho?
Dizem que os velhos repetem por senilidade. A repetição tem sido um reforçador de estigmas. Ao passo que a velhice inscreve perdas físicas, cognitivas, psicológicas nos corpos, as repetições de comportamentos apontam marcos de alterações neuropsicólogicas como acontece na doença de Alzheimer. Será que aquele que repete faz isso em vão? Repetir comporta em si um instinto de preservação social, de desejo de manter-se vivo. O poeta nos convida a "repetir, repetir até ficar diferente." Se olharmos com atenção a repetição nunca é a mesma. Quando o velho, em especial o que tem Alzheimer, repete, repete, ele busca, no caos de sua memória, compor novas linhas de forças que conectem fragmentos de sua história; Repetir, repetir como organização de lembranças atravessadas pelo esquecimento, pelo adoecimento e pelo tempo. Escutar a repetição pode gerar impaciência e cansaço. Mas algo sempre escapa. Uma escuta consciente pode ajudar na compreensão e no modo de escutar. Todos precisamos escutar melhor os velhos. É preciso repensar as práticas de cuidados na esfera pública e na esfera particular. Pois é no repetir, repetir, no escutar, escutar que reside a possibilidade de agir e de fazer ficar diferente. Escutar é um exercício laborioso e de respeito com as memórias que nos atravessam. Até breve!
Ruth Batista
Psicóloga Clínica
Familiar-cuidadora
Voluntária/Escutadeira de histórias de velhos
Mestra e Doutora