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"Essas coisas só acontecem com os vivos" (Re)inventando modos de viver com o idoso e a doe


Ainda hoje minha mãe traz à memória a velha frase que costumava dizer diante de alguma dificuldade da vida: "essas coisas só acontece com os vivos". Com essa frase ela queria nos mostrar o quanto estar vivo era e é condição essencial para o enfrentamento e superação dos momentos difíceis.

Para minha mãe, a vida é puro movimento e, uma vez estando nela, é preciso seguir seu ritmo e bailar, ora com passos alegres, ora tristes, ora novos, ora velhos, ora habituais, ora diferentes dos que estamos habituados, pois, o bailado da vida, por mais desafiador e difícil que possa se mostrar, guarda em si oportunidades de crescimento e aprendizado.

De fato, a notícia da doença de Alzheimer quando chega assombra toda a família, alguns permanecem em sua zona cinzenta, outros precisam sair tateando no obscuro e buscar a luz do entendimento e da ação. Esses familiares, que agora se tornam cuidadores, são apresentados a novas circunstâncias, repletas de mudanças, sentimentos, reações e temores. Para o familiar-cuidador a sensação que fica é que a doença chegou de repente e não houve tempo suficiente de "preparo" para ela, afinal quem não desejaria tempo de preparação para tamanha notícia?

Contudo, o cruel a dizer é que não existe preparação prévia para tal realidade, o que existe são processos de aprendizagem acontecendo em escalas variadas na relação diária entre familiar-cuidador, pessoa com a doença e a doença. Processos que exigem paciência e disposição.

Alzheimer, como costumo dizer, é uma doença que toca no que nos é mais precioso – a memória – esse lugar de dignidade que nos constitui como humanos detentores de uma trajetória, de uma história de vida, até então, passível de ser narrada.

Nossas memórias são como testemunhas dos nossos feitos, de nossas resistências e superações ao longo de uma existência, são como elos que nos ligam ao nosso ente querido que, diante de nossos olhos, vai se perdendo de si, dos outros e também de nós.

Quando a doença toca nesse lugar "sagrado", nesse lugar de afetos, lugar de certeza que seríamos perpétuos, que seríamos lembrados, isso fragiliza não só aquele que não consegue acessar suas memórias recentes, antigas como a nós familiares-cuidadores.

É comum que, nesse assombro, surjam dúvidas e questões que, a principio, levam o familiar-cuidador a se perguntar: como entender algo que ele não sabe o que é, que ele não sabe como é? Ou ainda que não quer experimentar, que não se sabe como experimentar?

E agora, o que fazer?

O contato com a doença de Alzheimer gera tamanho deslocamento, exige novos arranjos na rotina, nos comportamentos, nas relações e nas emoções. Para muitos a nova condição de cuidador não veio por escolha, ou até mesmo não foi acordada com os demais familiares. Se por um lado a pessoa com Alzheimer passa a viver a confusão, o medo, a dissociação de si durante as fases da doença, por outro o familiar-cuidador, guardada as devidas proporções, também transita em fases, em comportamentos de negação da doença e suas implicações, antes mesmo de aceitá-la.

Até o momento, o que se sabe é que Alzheimer é uma doença de processo contínuo e irreversível. Assim, ela não chega de repente, ao contrário disso ela segue, deixando pequenas pistas ao longo da história de vida da pessoa (que também não chegou na família de repente), pistas que às vezes são mais evidentes, outras nem tanto, o difícil é perceber suas sutilezas, pois culturalmente os velhos "esquecem", mas não devemos naturalizar as pistas no caminho, elas podem ajudar na busca por ajuda profissional e diagnóstico.

É provocante pensar: se não é somente o fato da doença e seus sintomas batendo à porta, o que mais chega, de repente, com tamanha imposição? Ouso dizer que é a própria sensação de assombro em constatar a chegada, sem aviso prévio, de uma doença tão delicada, concordam? Pois, a doença convoca o familiar a mergulhar no cuidado, e é nesse momento que se abre a porta das responsabilidades, intensidades, transformações, incertezas, frustrações, impotências, medo quanto ao futuro não só da pessoa com Alzheimer, mas o do familiar-cuidador.

Um corpo-familiar-cuidador que passará a vivenciar o estranhamento e o deslocamento do seu lugar de reconhecimento de si, que será afetado diretamente, que agora vê à sua frente a necessidade de reconfiguração da sua rotina, do seu modo de existir junto com a pessoa a ser cuidada, o que não é algo fácil de ser enfrentado.

Para tentar pausar essa conversa novamente lanço mão de outra frase de minha mãe. Ela diz com frequência: "o ser humano nasce, cresce e morre, mas felizes são os que envelhecem nessa caminhada". Se você viu romantismo nessa frase quanto à velhice, peço, olhe mais de perto, é preciso ver a importância, dignidade e cuidado no que se refere à essa felicidade de envelhecer, pois envelhecer reduz a produtividade, a autonomia, a saúde e o autocuidado. A velhice torna-se um tempo-outro, carregado de limitações que vão na contramão de uma sociedade na qual há uma grande valorização do atual, do moderno em detrimento ao velho, ao ultrapassado.

Aprendemos a cultivar o descarte não só de coisas materiais como de pessoas, porém não se pode negligenciar que envelhecer exige atenção, gastos, cuidados e investimentos não só familiares, mas em políticas públicas para o idoso. É necessário entender a importância e promover ações garantidoras de acesso aos serviços públicos e aos direitos – o que nem sempre acontece.

Embora alguns sinais do envelhecimento nem sempre foram vistos como doenças, nos dias atuais observa-se pequenos avanços em pesquisas relacionadas à perda cognitiva e de memória em idosos com Alzheimer, porém falar em perda da memória é muito mais amplo que falar de esquecimento.

Com certeza esse texto não comporta os inúmeros desafios que cercam a relação familiar-cuidador, doente e doença, entretanto, no contexto do cuidado com o idoso com Alzheimer um dos desafios mais frequentes para o familiar-cuidador é manter-se saudável. A pergunta que bate e volta é: como manter a saúde, o cuidar de si, considerando a roda viva dos sintomas apresentados na relação com a doença (confusão, irritabilidade, desassossego, insônia, angústia, depressão, estresse, ansiedade, sensação de morte em vida diante da falta de expectativas quanto ao que está por vir em cada fase da doença)?

Ainda que não seja tarefa das mais fáceis, não se pode deixar de lado que a convivência diária com a pessoa e a doença de Alzheimer pode promover benefícios, ainda que pequenos para alguns, pois o convívio pode possibilitar ao familiar-cuidador melhoria na habilidade de promover cuidados; ganho de experiência; resgates afetivos entre familiar-cuidador e doente; maior aceitação, compreensão das fragilidades emocionais e das diferenças entre os sujeitos envolvidos no processo de cuidar como de suas histórias; fortalecimento do auto-conhecimento diante de situações limites; promoção da empatia e resiliência.

Cada família, cada cuidador-familiar tem a oportunidade de (re)construir-se na experiência com a doença e com a pessoa adoecida. O que não deve ser negado é a importância em ser e criar espaços de cuidado de saúde para além do assombro, da insegurança, do medo que o cerca, porém como se faz isso?

Não há maneira exatamente certa para se fazer, mas sim tentativas, pois cada familiar-cuidador tem sua realidade, sua constituição afetiva, pessoal, social e coletiva, portanto cabe a ele, cercado de sua rede, quando exista, estabelecer para si o que pode ser esse espaço dentro de sua disponibilidade de tempo e financeira como: manutenção do cuidado pessoal (beleza, saúde, acompanhamento psicológico, consultas médicas e exames de rotinas (também disponíveis na rede pública), atividade física ou lazer como caminhadas, pedalar, leitura, cinema, conversa com amigo, etc.

A princípio, o tempo de duração desses espaços não deve ser um fator tão relevante, mas sim a qualidade e a constância que eles acontecem, isso sim pode fazer a diferença. Quando o familiar-cuidador recria esses espaços ele está exercitando desconectar-se, a princípio, de certo padrão emocional e físico assumido com a doença e não com a pessoa adoecida. São "desligadas" breves que funcionam como atualizações no sistema, acessando novas conexões consigo mesmo (isso é algo que exige esforço, e não acontece de primeira) para quando o familiar voltar para sua rotina de cuidados tenha em si uma reserva energética e de disposição, pois no caminho do cuidar não podemos nos perder de nós mesmos. Não se esqueçam! Cuidar do outro, implica cuidar de si também. Até breve.

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